Em dois anos, 26 mil funcionários públicos atingem idade da reforma

Inês Ramires, secretária de Estado da Administração Pública, revela que o Governo vai “apresentar um cabaz de aumentos para a função pública” para compensar inflação. Mas sublinha que a estratégia é “pensar no médio e no longo prazo para atrair e reter” trabalhadores.

O aumento dos salários da função pública no próximo ano continua a ser uma incógnita e o tema só vai começar a ser discutido com os sindicatos em Setembro. Sem se comprometer com aumentos ao nível da inflação, a secretária de Estado, Inês Ramires, diz que as actualizações anuais dos salários terão de ser conjugadas com as medidas para reter os funcionários públicos, que terão um “grande impacto orçamental”.​

O número de funcionários públicos está no nível mais alto desde 2005. O aumento ocorreu sobretudo na educação e na saúde, mas estas são também as áreas onde há falta de trabalhadores. Como é que se resolve este paradoxo?
Analisámos o aumento de 15 mil trabalhadores na Administração Pública (AP) [entre Março de 2021 e de 2022] e 98% entraram nas áreas da saúde, educação, ciência e tecnologia e forças de segurança. Dentro da saúde e da educação parece sempre pouco, mas ainda assim o Estado tem dado resposta. Claro que tivemos este choque de stress da pandemia que representou um acréscimo de funções do Estado e a que respondemos com mais contratações.

O que verificamos com estes números é que, apesar de estarmos a atingir os valores de 2011, o peso do emprego das administrações públicas na população empregada é menor e o perfil [dos trabalhadores] mudou muito. As funções do Estado estão a ser repensadas e, por outro lado, temos trabalhadores a atingir a idade da reforma. Em 2022, a estimativa é que quase 11 mil possam sair e, em 2023, são quase 15 mil.

As 26 mil pessoas que podem reformar-se em 2022 e 2023 são de que áreas e onde será preciso reforçar trabalhadores?
Dentro dos 11 mil trabalhadores que vão atingir a idade da reforma em 2022, 2800 são das carreiras gerais e os restantes das carreiras especiais. Em 2023, as carreiras gerais ultrapassam os 4100 trabalhadores.

A nossa ideia é reforçar o planeamento para percebermos [onde será preciso reforçar dos recursos humanos]. Cada sector vai ter de fazer esse esforço de antecipação das necessidades, atendendo às saídas e às necessidades que se mantêm. Na educação já existe esse planeamento.

Estas saídas têm em conta a redução da idade da reforma em 2023?
Já têm em conta essa alteração.

No recrutamento centralizado de técnicos superiores, lançado em 2019, 21% das pessoas colocadas nos serviços acabaram por desistir. Porquê?
Daquilo que podemos aferir neste momento, um dos factores foi o tempo que demorou desde a candidatura até à homologação. Estamos a interagir com as entidades empregadoras para percebermos até que ponto as necessidades foram cobertas com os candidatos. Como os serviços não tiveram intervenção, e é isso que estamos a tentar alterar, limitaram-se a receber os candidatos.

Na semana passada, apresentaram aos sindicatos um conjunto de alterações ao processo de recrutamento centralizado. O que vai mudar?
Estamos a trabalhar numa nova plataforma que irá substituir a Bolsa de Emprego Público e que permitirá desmaterializar a aplicação dos métodos de avaliação, que era um dos problemas maiores. No último recrutamento centralizado tivemos 15 mil candidatos elegíveis, o que representava uma logística enorme na realização das provas.

Outra alteração é serem os serviços a fazer a entrevista de avaliação de competências para o preenchimento do perfil.

Outro objectivo é que o Estado faça um levantamento anual de quais são as necessidades, para termos mais previsibilidade para a administração e para os próprios candidatos, que sabem que periodicamente é aberta esta reserva.

O Governo vai permitir que os serviços usem a reserva de trabalhadores para contratar a termo e os sindicatos alertam que isso fomenta a precariedade. Em que situações os serviços podem recorrer à bolsa para contratar a prazo?
Estas reservas centralizadas são abertas para contratação por tempo indeterminado e isso não vai mudar. Mas o que verificámos, em experiências durante a pandemia na área da educação, é que permitir a utilização das reservas quando o Estado tem uma necessidade temporária abrevia os tempos. Claro que depende da disponibilidade dos trabalhadores aceitarem ou não os termos dessa contratação, ninguém sairá da lista graduada se recusar um contrato a termo.

Não estamos a incentivar que as contratações passem a ser a termo, porque as necessidades temporárias têm regras especiais para contratação; nem a tentar reconfigurar o que são necessidades temporárias. Estamos a tentar que a máquina do Estado fique aliviada de procedimentos.

O actual concurso centralizado demorou quase dois anos. Qual o impacto das alterações na redução destes prazos?
Demorou 18 meses, desde a abertura até à homologação. Não lhe consigo dar a estimativa final, queremos encurtar bastante.

Quando é que abrirão um novo concurso centralizado?
Estamos a preparar-nos para ter, articulados com o Ministério das Finanças, alguma coisa no próximo ano.

Uma das prioridades do programa do Governo é captar e fixar talentos. Parece que a função pública vive um momento de falta de credibilidade junto dos jovens.
Certo. E estamos, precisamente, a fazer uma aposta nos estágios para atrair as pessoas no início da sua carreira para um primeiro contacto com a AP e com as funções do Estado. Estes estágios dão uma majoração em futuros concursos e esta previsibilidade que estamos a tentar no recrutamento é para que estas pessoas possam depois entrar para a administração.

Outra esfera é a retenção de talento. Para isso, e a perspectiva é da legislatura, vamos apostar na capacitação dos trabalhadores que já estão na AP, tendo já dado um primeiro sinal com a valorização do grau de doutoramento dentro da carreira geral de técnico superior, e temos pela frente um trabalho árduo de repensar como é que entre a revisão da Tabela Remuneratória Única (TRU) e do Sistema Integrado de Avaliação de Desempenho da Administração Pública (SIADAP) conseguimos levar os trabalhadores a perceberem que podem ter no Estado uma carreira com perspectivas de progressão. É este o desafio e a dificuldade. Não conseguimos avançar só com uma revisão da TRU, vamos ter de repensar qual deve ser o intervalo entre as carreiras gerais, o que depois tem impacto nas carreiras especiais de graus de complexidade idênticos, e ver como é que fazemos a avaliação de desempenho produzir efeitos na motivação do trabalhador.

A par dessas alterações para fazer ao longo da legislatura, o Governo apresentou uma proposta aos sindicatos para valorizar em 52 euros a entrada na carreira técnica superior e em cerca de 48 euros na carreira de assistente técnico, enquanto os doutorados podem ter uma progressão de 400 euros. Mas se o Salário Mínimo Nacional (SMN) aumentar para 750 euros no próximo ano, um assistente técnico ficará a ganhar apenas mais sete euros do que um assistente operacional. Em 2023, vão voltar a mexer na TRU?
Esta proposta para mitigar a diferença entre carreiras de grau de complexidade diferente é uma medida para 2022. A aferição, que ainda não está feita, de qual deve ser a progressão do SMN no próximo ano vai influenciar os cálculos que vamos fazer de como enfrentar, no próximo ano, essa compressão.

Quando é que a valorização dos níveis de entrada entra em vigor? Em 2022?
Não lhe posso dizer a si o que não disse aos sindicatos. Vamos fazer contas e na próxima reunião, dia 29, diremos.

A discussão destas propostas vai prolongar-se até Setembro e coincidir com o Orçamento do Estado para 2023?
Não é nossa intenção prolongar para Setembro. Para Setembro, estamos a trabalhar noutras propostas que tenham impacto mais à frente.

Estas alterações que propõem terão impacto na contagem dos pontos? Os trabalhadores que virem as suas posições salariais alteradas perdem os pontos acumulados com a avaliação?
Estamos a considerar e também ouvimos os sindicatos sobre isso. Se, nuns casos, a [progressão] é de 50 euros; noutros, como no caso dos técnicos superiores com doutoramento, podem ser duas posições remuneratórias e há diferenças entre o que impacta ou não em termos de avaliação de desempenho.

Quantos trabalhadores serão abrangidos?
Vamos dar esse dado aos sindicatos em conjunto com os impactos da medida.

Em relação aos aumentos salariais de 2023, o Governo tem dito que é preciso avaliar a natureza da inflação e o ministro da Economia disse recentemente que quanto mais a guerra se prolongar mais estrutural esse indicador se torna. É expectável que os salários da função pública tenham aumentos de 4% ou 5% em 2023?
A negociação de qualquer actualização salarial terá início a partir de Setembro e tentaremos ter em consideração todos os factores que nacional e internacionalmente vão afectar esta negociação.

Imaginemos que concluem que não há margem para acompanhar a inflação que se verificar no final do ano, como é que vão compensar os trabalhadores da função pública pela perda de poder de compra? Que outras medidas poderão avançar?
Conjunturalmente, pensaremos quais serão as melhores medidas para enfrentar uma inflação maior e como é que conseguimos apresentar um cabaz de aumentos para a função pública, mas o Governo está altamente investido em pensar no médio e no longo prazo, no sentido em que esta reformulação para atrair e reter [trabalhadores] vai ter um grande impacto orçamental. Nós achamos que a aposta nas reformas estruturais tem um maior impacto em termos de reter as pessoas e de aposta no emprego público, do que as medidas conjunturais.

O que está a dizer é que será preciso combinar medidas como as que foram apresentadas aos sindicatos na semana passada com a actualização geral anual?
Exactamente. Se vai haver uma alteração estrutural na retenção de pessoas dentro da AP, isso vai ter um impacto orçamental que tem de ser conjugado com o que vamos conseguir fazer em termos conjunturais para dar resposta à situação actual.

Os sindicatos vão aceitar o facto de não haver aumentos iguais à inflação? Está preparada para enfrentar uma vaga de contestação?
Não estou a dizer que não vão acontecer os aumentos. Os recursos são limitados, vamos ter sempre de ponderar se faz mais sentido, num certo momento, dar resposta a uma situação conjuntural ou equilibrar mais as coisas e ir a ambos os lados.

O Governo também quer rever o SIADAP. As quotas para as notas mais altas vão manter-se? Admitem alargar os limites?
Não temos uma cultura muito atreita à diferenciação de desempenho, as próprias chefias não têm essa cultura. Não podemos não ter diferenciação de desempenho, ainda que perceba que nalguns casos impor que apenas “xis” por cento atinge uma certa classificação dá a sensação de que, independentemente do esforço, os trabalhadores vão sempre esbarrar nas quotas.

"Não estamos a incentivar que as contratações passem a ser a termo, porque as necessidades temporárias têm regras especiais para contratação; nem a tentar reconfigurar o que são necessidades temporárias. Estamos a tentar que a máquina do Estado fique aliviada de procedimentos”

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A discussão mais profunda da TRU, das carreiras e do SIADAP vai iniciar-se quando?
Não lhe queria dar um prazo. A partir da próxima negociação salarial anual veremos o planeamento que conseguimos fazer sobre estes temas mais estruturantes e com impactos maiores.

Um dos problemas do Estado é a dificuldade em mobilizar os recursos para onde são necessários. Algumas experiências, como o incentivo à fixação de trabalhadores no interior, não têm tido sucesso. O que falhou?
O Governo tentou criar condições para que esse programa tivesse êxito. Tivemos os 300 trabalhadores a manifestar vontade de utilizar o programa e, ao termos só 10 que concretizaram, temos de pensar o que aconteceu aos restantes. Aqui convergem vários factores: a pessoa pode ter mudado de opinião, pode não ter conseguido ir para o local que pretendia, o serviço de origem pode não ter dado acordo.

Os sindicatos dizem que o apoio de 4,47 euros por dia é ridículo.
O incentivo era um cabaz, não tinha só este suplemento. Temos de estudar por que é que as condições não foram suficientemente atraentes.

Em relação à semana de quatro dias, o sector público já teve esta experiência. Mobilizou muitos trabalhadores?
A informação da Direcção-Geral da Administração e do Emprego Público era que não havia praticamente trabalhadores neste regime. Agora vamos ter de estudar como é que regimes que conferem direitos a trabalhadores podem ser ajustados às especificidades do Estado. Uma coisa é uma empresa decidir que passa à semana de quatro dias com ou sem supressão de horas e outra é a responsabilidade que o Estado tem de responder a um conjunto de sectores que trabalham 24 sobre 24 horas ou que têm especificidades próprias, como a educação.

Essa cautela é porque a semana de quatro dias implicaria admitir mais trabalhadores?
Mesmo que fosse prestar o mesmo número de horas semanais em menos dias, a rotatividade com que temos de assegurar muitos serviços obriga a estudar o impacto para perceber como é que o Estado consegue dar resposta.

Raquel Martins - Público13 de Junho de 2022