Portugal ganha oito milhões de euros em bolsas europeias de investigação

Quatro cientistas em Portugal venceram uma bolsa de consolidação do Conselho Europeu de Investigação. Projectos abrangem as áreas dos novos materiais, neurociências e ecologia.

O Conselho Europeu de Investigação (ERC, na sigla em inglês) anunciou esta terça-feira os vencedores de mais uma edição das bolsas de consolidação, atribuídas a investigadores a meio da carreira, ou seja, que tenham entre sete a 12 anos de experiência, após completarem o doutoramento. Em Portugal, quatro investigadores recebem dois milhões de euros cada um para continuarem a desenvolver os seus projectos que vão desde o que se passa no nosso cérebro quando andamos até ao estudo da cooperação entre os animais, passando por novos métodos para medir a temperatura de um tumor ou inovadoras estratégias de captação de CO2.

Duas das bolsas foram atribuídas a Nuno Silva e Luís Mafra, dois cientistas do Ciceco – Instituto de Materiais de Aveiro (um laboratório associado da Universidade de Aveiro), outra à investigadora Megan Carey, que lidera o Laboratório Circuitos Neurais e Comportamento da Fundação Champalimaud e, por fim, a quarta bolsa foi atribuída a um projecto de Rita Covas, uma investigadora do Instituto de Ciências, tecnologias e Agroambiente da Universidade do Porto. Há ainda três investigadores portugueses a trabalhar fora do país que também ganharam este milionário financiamento para cinco anos para realizar os seus projectos. São: Tiago Branco, da University College de Londres, Susana Coelho, do Centro Nacional de Investigação Científica, em França, e ainda Carlos Filipe Pereira, na Universidade de Lund, na Suécia.

No total, há 301 cientistas recebem financiamento para realizar os seus projectos, seleccionados de um total de 2453 propostas. Os bolseiros estão em 24 países diferentes da Europa, com Alemanha (52 projectos), Reino Unido (50), França (43) e Holanda (32) como principais países financiados. Na edição deste ano, investigadores de 37 nacionalidades receberam financiamento, entre os quais destacam-se os alemães (55 bolsas), os franceses (33), os holandeses (28) e os italianos (23). Os projectos abrangem uma ampla gama de tópicos em ciências físicas e engenharia, ciências da vida, bem como ciências sociais e humanas. No comunicado de imprensa, o ERC refere também que um terço das bolsas foi atribuído a investigadoras e que esta “nova ronda” de financiamento servirá de base para a criação de um total de cerca de dois mil empregos nas equipas dos cientistas.

Sempre a aprender a andar

Megan Carey, no Centro Champalimaud, em Lisboa, Portugal, já tinha recebido antes um incentivo importante do ERC quando venceu uma bolsa de 1,5 milhões de euros concedidos ao abrigo do programa que apoia investigadores em início de carreira. Agora, chegam mais dois milhões para ajudar o seu projecto a continuar a andar em frente.

Quatro investigadores a trabalhar em Portugal recebem financiamento do Conselho Europeu de Investigação

O termo “andar” é propositado. A investigação de Megan Carey é sobre isso mesmo: o facto de estarmos sempre, todos os dias, a aprender a andar. É esse o esforço que fazemos quando, por exemplo, descemos uma rua escorregadia com sapatos novos ou tentamos atravessar uma sala enquanto transportamos uma bandeja de copos. “Com o tempo e a prática, acabamos por ir aprendendo e armazenando padrões diferentes de caminhada que garantem que o movimento do nosso corpo seja coordenado e calibrado adequadamente, independentemente da situação em que nos encontremos”, refere o comunicado da Fundação Champalimaud.

Assim, a cientista quer saber mais sobre “como é que a actividade dos neurónios no cérebro é capaz de produzir movimentos aprendidos e coordenados”. “Este projecto focar-se-á no estudo de como o cérebro aprende a coordenar o movimento de todo o corpo enquanto caminha em ambientes diferentes. Isto é algo que fazemos sem pensar, mas é uma função de importância crucial tanto para os humanos como para os animais e que, além disso, representa um desafio para os sistemas robóticos mais sofisticados”, explica Megan Carey.

Para monitorizar ao detalhe a complexa arte da locomoção, a sua equipa criou um “software de visão artificial de código aberto que recolhe e analisa com elevada precisão as trajectórias das várias partes do corpo em ratinhos”. Chama-se LocoMouse e foi desenvolvido com o apoio do ERC na bolsa que a investigadora ganhou em 2014. Através deste programa foi já identificada uma região do cérebro – o cerebelo – que está especialmente implicada na exigente tarefa de coordenação da caminhada, entre outras descobertas. “Num dos projectos, descobrimos uma relação entre a velocidade da caminhada e a velocidade de aprendizagem em ratinhos”, diz Megan Carey, acrescentando: “Noutro projecto, identificámos circuitos neurais que reajustam a posição e a sincronização das patas dos ratinhos quando colocados em ambientes novos.” Agora, com esta nova bolsa do ERC, a equipa planeia combinar “a análise quantitativa do comportamento com a dissecção genética do circuito” e, dessa forma, determinar como os componentes espaciais e temporais do controlo motor são codificados e comunicados através de circuitos neurais no cérebro.

Medir a temperatura a 3D e sem fios

Os tradicionais termómetros medem a temperatura por contacto directo. As câmaras de infravermelhos já são capazes de nos dar informação sobre a temperatura à distância mas apenas sobre a superfície. São aquelas que vemos, por exemplo, nos aeroportos e que permitem detectar viajantes doentes. O projecto de Nuno Silva, investigador principal, desde 2008, no laboratório associado da Universidade de Aveiro Ciceco – Instituto de Materiais de Aveiro vai ainda mais fundo neste capítulo dedicado à medição de temperatura.

O seu desafio é a representação em imagem da temperatura a três dimensões, sem fios e em profundidade. Para quê? Para, por exemplo, obtermos informações sobre a temperatura de um órgão no nosso organismo ou mesmo de um tumor, durante uma intervenção de ablação térmica, uma técnica que usa altas temperaturas para destruir um tumor.

E como? Simplificando, da mesma maneira que se obtém dados morfológicos através de uma ressonância magnética que recorre aos chamados “agentes de contraste” com propriedades magnéticas. Neste caso, as nanopartículas que são administradas como agentes de contraste têm a capacidade de medir a temperatura no sítio onde se encontram, dentro do corpo.

O projecto, agora financiado, tem o título “Rise of the 3rd dimension in nanotemperature mapping” e já conta com alguns anos de preparação. Nuno Silva, que se dedica ao desenvolvimento de nanopartículas magnéticas, nanotermómetros e hipertermia, refere que deverá patentear em breve um instrumento que espera que sirva, sobretudo, como meio auxiliar terapêutico na área da oncologia. Mas, admite, o seu “método” poderá ser aplicado a qualquer coisa que seja opaca e que exija uma medição de temperatura sem recurso a fios. Por exemplo? Um pneu de Fórmula 1.

O desafio fundamental da captura de CO2

Luís Mafra tem 41 anos e é investigador principal em espectroscopia de ressonância magnética nuclear (NMR em inglês). Um cargo complicado para uma tarefa ainda mais difícil. O projecto que tem em mãos com o quase indecifrável título de “Unveiling CO2 chemisorption mechanisms in solid adsorbents via surface-enhanced ex(in)-situ NMR” ganhou, como os outros, dois milhões de euros. O objectivo é, segundo o comunicado, “aprofundar a compreensão à escala molecular das interacções nas superfícies gás-sólido, o que permitirá conceber materiais porosos com propriedades adsorventes melhoradas para captura de dióxido de carbono”.

Para trazer esta investigação fundamental para o mundo real e para que se perceba qual pode ser o seu propósito, Luís Mafra começa por falar ao PÚBLICO no fumo que sai das chaminés industriais após a queima de carvão ou gás natural, por exemplo. Neste gás há muitos ingredientes e muitos deles são tóxicos. Um deles é o conhecido CO2 que nos ameaça com o temido efeito de estufa. Existem actualmente inúmeros projectos que procuram um material capaz de interagir e capturar de forma eficaz o CO2 que existe numa mistura gasosa. No entanto, os materiais existentes têm diferentes comportamentos sob diferentes condições e, além disso, até agora todos eles implicam um elevado custo energético.

O projecto de Luís Mafra consiste, assim, em começar por esclarecer os mecanismos de interacção entre o CO2 e materiais porosos, à escala molecular, para perceber como e porquê alguns materiais têm um melhor ou pior desempenho. Para quê? Encontrando a “a fórmula” que garante a eficiência deste mecanismo será possível passar ao passo seguinte e chegar até ao melhor candidato para este trabalho. Para já, o plano é “apenas” encontrar a formula, diz Luís Mafra que explica que o material que está a usar é “sólido nanoporoso”, ou seja, uma espécie de pó (com poros). E que bom que era, um dia, encontrar um pozinho mágico que fosse capaz de capturar o CO2 das chaminés de todo o mundo com baixos custos energéticos. No limite, com muita ciência fundamental em cima, é aí que o projecto de Luís Mafra pode chegar.

A escolha do melhor parceiro

Rita Covas está, neste momento, “em trabalho de campo na África do Sul” e aparentemente inacessível, informa o gabinete de comunicação do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos (Cibio), da Universidade do Porto, onde actualmente trabalha. A investigadora especializada em ecologia comportamental ganhou a bolsa do ERC com o projecto que submeteu através do Instituto de Ciências, Tecnologias e Agroambiente da Universidade do Porto. Na lista de vencedores constata-se que o título do projecto é “A escolha do parceiro e a evolução da cooperação”. Esse foi precisamente o tema de um dos seus mais recentes artigos publicados. No início deste ano, Rita Covas assinou um artigo na revista Trends in Ecology and Evolution, do grupo Cell, sobre os benefícios sexuais e sociais da cooperação em animais.

No resumo do trabalho refere-se que a investigação partiu do facto de já se ter demonstrado antes em estudos teóricos e empíricos em humanos que a selecção sexual e social estabiliza interacções cooperativas. Rita Covas quis arranjar alguma forma de testar essas hipóteses apresentadas como explicações para a cooperação noutros animais. A tarefa não era fácil. Até porque, justifica no artigo, “a prevalência da cooperação entre parentes e o facto de se considerar que o comportamento cooperativo não é confiável contribuíram para desacelerar a investigação nessa área”.

No entanto, optando por abordagens baseadas nas teorias clássicas de selecção e sinalização sexual e apostando nos desenvolvimentos recentes no campo das síndromes comportamentais, a cientista defende que existem mecanismos para garantir a confiabilidade da cooperação. “Além disso, desenvolvimentos metodológicos (redes sociais e microtracking) e conjuntos de dados de longo prazo permitem medir a escolha do parceiro num contexto de cooperação e os benefícios resultantes da adequação tanto para os cooperadores quanto para os indivíduos que se associam a eles”, acrescenta o resumo do artigo.

Ainda que Rita Covas não o tenha confirmado, o título do projecto e a sua mais recente investigação levam a concluir que os dois milhões de euros do ERC vão servir para reforçar esta hipótese e aperfeiçoar os instrumentos para analisar os benefícios sexuais e sociais da cooperação em animais, especificamente no processo de escolha do parceiro, e a sua evolução.

Andrea Cunha Freitas - 10 de Dezembro de 2019, Público