Procrastinar: deixar para amanhã o que se tem de fazer hoje

Adiar projetos, tarefas, decisões. Arrastar o inevitável até ao limite. Disfunção psicológica ou mecanismo de defesa? Preguiça ou comportamento de fuga?

O ciclo da procrastinação é mais ou menos assim. Há uma tarefa para cumprir, um trabalho para fazer, uma decisão para tomar, uma consulta para marcar. O dia está a começar, há sempre tempo para um café.

É preciso ir ao email ou aos emails ver o que se passa, não vá ter chegado alguma coisa importante. Ainda é cedo, há tempo para ir ao Facebook, responder a mensagens, até iniciar uma conversa, quem sabe. Um copo de água, sair da secretária, talvez mais um café e dois dedos de conversa se houver alguém no mesmo percurso.

Voltar a sentar, mais uma olhadela no Facebook, uma ronda pela internet a ver se há novidades, verificar se o telemóvel recebeu alguma mensagem. Voltar à tarefa inicial e perceber que o tempo passou e que, na verdade, não se fez grande coisa, na verdade quase nada.

O relógio não pára, os dias também não, e procrastina-se adiando o inadiável até ao limite do tempo (e da paciência do chefe). Hoje, amanhã, depois de amanhã.

Procrastinar não é uma atividade que se comente em público. É um comportamento, de certa forma, reservado. Ele procrastina e acha que tem uma disfunção psicológica e, por vezes, até pensa que talvez precise de ajuda. Ela sabe que é um comportamento de fuga, sobretudo quando sai da sua zona de conforto. A ansiedade é um denominador comum. Ambos sabem o que estão a fazer e quando há prazos não calcam a linha vermelha.

O relógio não pára, os dias também não, e procrastina-se adiando o inadiável até ao limite do tempo (e da paciência do chefe)

Ricardo (nome fictício), 61 anos, tem a secretária de trabalho cheia de papéis, livros, jornais, revistas, tudo e mais alguma coisa. Arrumar? Em agosto, que há menos para fazer e é altura ideal para se dedicar a isso. Agosto chega, papel para aqui, papel para acolá. Talvez seja melhor no agosto do próximo ano.

Aquela dor de dentes que remói e que se aguenta até que tem mesmo que ser, até que é mesmo preciso ir ao dentista. A consulta médica que se adia e adia porque amanhã é que se vai tratar disso. E amanhã é depois e o amanhã nunca chega.

Os óculos que esperam duas semanas para ir para arranjar porque, lá está, hoje torna-se amanhã sucessivamente. “É uma disfuncionalidade, é uma estupidez. Por que razão não faço agora o que tenho de fazer mais à frente?”, questiona e questiona-se este profissional de longa data na comunicação. É procrastinar, não é preguiça, diz ele, até porque não é de ficar em casa no sofá à espera que as horas passem.

“Nas conversas inteligentes que tenho comigo mesmo pergunto-me por que deixo para amanhã o que tenho de fazer hoje”, revela. Quando há prazos, a atitude muda de figura. “Se me impõem uma meta, cumpro. Se não, fica para depois. No que posso, adio tudo.”

Sabe que é assim, tem consciência da sua procrastinação que é mais forte do que a sua vontade. “É uma questão psicológica. Podia fazer isto e aquilo e não pensar mais no assunto, mas não.” E esse sucessivo e constante adiar na vida pessoal, quando não há prazos, tem consequências que mexem com a cabeça. “Provoca-me ansiedade e sofrimento porque adio, adio, adio.”

“Provoca-me ansiedade e sofrimento porque adio, adio, adio.”

Susana (nome também fictício), 41 anos, olha para a tarefa, quando é complexa e não muito entusiasmante, e não consegue ver uma ponta por onde começar. E adia. “Vejo o bolo todo e não sei por onde começar”, confessa. “Quando é difícil para mim, e tenho noção disso, fujo o mais que posso.” Até ao limite, mas, quando tem mesmo que ser, é mesmo para ser.

“Acabo por fazer, nunca me ponho em risco.” Procrastinar é, na sua opinião, “um comportamento de fuga”. Não uma disfunção, não um desequilíbrio mental – é fugir, o mais que pode, àquela tarefa. “Procrastino mais quando não estou na minha zona de conforto”, admite esta trabalhadora na área académica.

Um comportamento muito ligado à ansiedade, à capacidade de gerir emoções. À personalidade de cada um, às próprias razões para procrastinar. “Julgo que as pessoas com funções mais executivas não são tão procrastinadoras quanto as pessoas com trabalhos mais mentais, que acho que procrastinam mais.”

Dor e sofrimento emocional

O medo, o perfecionismo, a falta de motivação, a baixa autoestima, podem ser causas para procrastinar. Para a psicóloga, psicanalista, psicoterapeuta e professora catedrática de Psicologia Manuela Fleming, procrastinar, a arte de adiar o inadiável, é uma questão cultural universal, não exclusiva ou circunscrita a um país ou a uma determinada sociedade, e surge como uma resposta de autodefesa perante uma dificuldade, um obstáculo, um problema.

Procrastinar não é um problema psicológico, uma perturbação mental, ou uma disfuncionalidade. “É um mecanismo de defesa da nossa mente face ao sofrimento psicológico. O ser humano quando se confronta com um problema que traz alguma dor, algum sofrimento mental, adia na esperança que o problema se resolva por si, que alguém o resolva, que magicamente desapareça”, refere. “Não é uma disfuncionalidade. É a tendência para não se confrontar com o que é desagradável”, acrescenta.

“[Procrastinar] não é uma disfuncionalidade. É a tendência para não se confrontar com o que é desagradável” (Manuela Fleming, psicóloga)

Deste modo, encontram-se desculpas para não ir ao médico, apesar dos sintomas, para adiar um diagnóstico, acumulam-se faturas por pagar e chegam as multas. E por aí fora. Aquele medo de evitar o confronto com o que é desagradável explica o adiar como se houvesse sempre um amanhã ou um depois de amanhã.

“A procrastinação não é boa no sentido que o problema não se resolve, agrava-se.” Mas não é uma negação do problema, o que seria pior. Tem-se consciência do problema e adia-se o que tem de ser feito. O projeto, a decisão, a consulta, o trabalho. “O ser humano não foi feito para sofrer, foi feito para ter prazer. Mas a realidade acaba por demonstrar o contrário. E a nossa mente é muito imaginativa para não sofrermos”, justifica.

Procrastina-se por algum motivo, quase sempre para não haver confronto com algo doloroso e desconfortável. Mas também depende da personalidade de cada um. Há os mais infantis que não crescem e esperam que alguém resolva. Os que não se querem chatear e evitam conflitos. Os que não conseguem enfrentar problemas e dificuldades e arrastam uma decisão até ao limite da impossibilidade. “Depende da personalidade de cada pessoa, se tem medos, se tem fragilidades.”

A procrastinação não é uma questão transcendente, é uma questão do dia-a-dia, e não há estudos académicos profundos sobre o assunto. Há, isso sim, emoções e atitudes. O ritmo da vida atual, as situações de stresse, as expectativas, a ansiedade, as exigências. O ideal de perfeição e o peso de corresponder ao que se espera, dia após dia, podem gerar bloqueios e, desta forma, não há tarefa que aguente e não se consegue escrever uma linha, uma página, acabar um trabalho, por exemplo. E adia-se, adia-se, adia-se.

Para o sociólogo Elísio Estanque, a procrastinação pode reunir “as complexidades e paradoxos da nossa própria psicologia social.” É que “todos transportamos pulsões que nem sempre são controladas pela nossa racionalidade”. E procrastinar pode ser “uma resposta evasiva, um mecanismo psicológico para preservar alguma estabilidade e emoção quando se está sob pressão”.

Quando o ritmo da vida não dá descanso e as mentes têm de estar sempre ligadas a alguma coisa. “E as coisas começam a protelar-se até ao limite e inventam-se formas para ocupar o tempo.” Procrastinar é isso, é deixar para amanhã o que se tem de fazer hoje. Dia após dia.

Para não adiar o inadiável

  1. Contrariar a procrastinação passa sobretudo por gerir as emoções e não propriamente o tempo.
  2. Inicie uma tarefa na altura do dia em que a cabeça tem mais energia mental.
  3. Decomponha a tarefa, divida a empreitada passo a passo, comece devagar e com objetivos bem definidos.
  4. Limite as distrações: telefonemas desnecessários, televisão ligada, navegar sem rumo na Internet, no Facebook e restantes redes sociais.
  5. Uma recompensa pessoal quando se termina alguma tarefa é um método que estimula, que ajuda a fazer o que tem de ser feito.
  6. Use apps ou notificações que relembrem o que é preciso fazer.
  7. Peça ajuda a amigos para manter o foco e não dispersar.

Texto de Sara Dias Oliveira – Notícias Magazine