Politécnicos “não podem manter o mesmo nível de despesa” se não forem compensados pelos efeitos da inflação

A nova presidente do CCISP, Maria José Fernandes, entende que o aumento de 2% por ano nas dotações do Orçamento do Estado para o ensino superior, acordado na anterior legislatura, já não é suficiente face ao actual aumento de custos. O novo modelo de financiamento prometido pelo Governo só faz sentido depois de uma actualização que permita a todas as instituições “ficar no mesmo ponto de partida”.

Entrevista

Têm sido raras as mulheres a ocupar posições de liderança no ensino superior. Num total de 28 instituições públicas, há, neste momento, cinco reitoras ou presidentes – Maria de Lurdes Rodrigues, no ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa, Hermínia Vila, na Universidade de Évora, Ângela Lemos, no Politécnico de Setúbal, Fátima Carvalho, no Politécnico de Beja, e Maria José Fernandes, que dirige o Instituto Politécnico do Cávado e do Ave (IPCA) desde 2017.

“Está agora a chegar a estes lugares a geração que entrou no ensino superior quando as mulheres passaram a ter mais hipóteses de estudar. A situação vai mudar”, acredita Fernandes, que é também a primeira mulher a presidir ao Conselho Coordenador dos Institutos Superiores Politécnicos (CCISP).

Está acostumada ao papel de pioneira. Foi a primeira professora do quadro do IPCA, em 1997, um ano depois do nascimento da instituição sediada em Barcelos. Na altura, tinha apenas 74 alunos – hoje são 6200 – e a maioria do corpo docente emprestado por outras instituições, sobretudo a Universidade do Minho. Maria José Fernandes também se formou em Braga, em Gestão, tendo começado a trabalhar no sector privado, enquanto fazia um mestrado em Contabilidade, que acabaria por ser a sua porta de entrada para uma carreira como docente no ensino superior, que começou numa instituição privada, o Instituto Superior da Maia.

A nova equipa ministerial já prometeu rever o modelo de financiamento do ensino superior. Na opinião do CCISP, quais devem ser as balizas dessa reforma?
O tema ainda não foi a discussão dentro do CCISP. Vamos discuti-lo quando tivermos uma proposta. Nós também achamos que o modelo de financiamento deve ser revisto. Existe uma fórmula de financiamento, que é de 2009 e está muito centrada na dimensão das instituições. Mas há um conjunto de outros factores que devem ser tidos em conta.

Que factores?
Primeiro, é preciso fazer uma actualização do financiamento do Estado para ficarmos todos no mesmo ponto de partida. Há algumas divergências muito grandes logo à partida. Depois, o modelo de financiamento tem que definir um valor mínimo para cada instituição, mas depois tem que haver um acréscimo em função das actividades que as instituições desenvolvem. Se há investimento público, temos que saber como avaliamos o que está a ser feito. Nessa avaliação temos que considerar que as instituições de ensino superior estão em diferentes regiões e têm o seu contexto. Não é a mesma coisa atrair pessoas, financiamento, fazer acordos com empresas no interior ou no litoral.

O anterior ministro, Manuel Heitor, já tinha nomeado uma equipa para avaliar o financiamento das instituições de ensino superior, no início do ano passado. Mas esta viria a ser extinta, seis meses depois, após a demissão dos representantes dos institutos politécnicos, entre os quais se encontrava. Por que não correu bem esse processo?
Penso que o processo não correu bem porque partiu de um princípio errado, que foi termos discutido a fórmula de financiamento sem olharmos para o que está para trás. Eu saí do grupo porque foram apresentados, por um membro do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP), numa reunião do CRUP, dados sobre o financiamento, afirmando que a fonte dos mesmos era o nosso grupo de trabalho. Ora, isso não era verdade. Quebrou-se ali a confiança.

Eram “dados manipulados”, como se disse na altura?
Manipulados ou não, eu nem estive a ver os dados. Faziam-se simulações, com determinados pressupostos, dizendo que eram dados do grupo de trabalho, o que não era verdade.

Fica-se com a sensação de que há uma de “guerra fria” entre os politécnicos e as universidades por causa do financiamento.
Não me parece que haja uma “guerra fria”. Há dois subsistemas de ensino superior e cada um acha que deve ter coisas que não tem. Não podemos estar a olhar para os outros como inimigos.

Até termos um novo modelo de financiamento, vigorará o contrato de legislatura, assinado em 2019 e que prevê um aumento das dotações do Orçamento do Estado para o sector de 2% por ano. Esse acordo ainda faz sentido?
Não e já manifestámos isso à senhora ministra. Isso é fruto também da questão da inflação. As empresas que fornecem gás e electricidade às instituições de ensino superior estão a renunciar os contratos, porque querem aumentar os valores. Se não tivermos um aumento de financiamento, vamos ter que olhar para a estrutura da despesa e ver onde podemos poupar. Obviamente, não podemos manter o mesmo nível de despesa. A única hipótese seria usar os saldos de gestão, mas nós precisamos dos saldos para fazer obras.

Tem alguma indicação sobre quais podem ser as regras do despacho orientador para a fixação de vagas no próximo concurso nacional de acesso?
O CCISP foi ouvido pelo grupo de trabalho liderado pelo presidente da Comissão Nacional de Acesso ao Ensino Superior e manifestámos alguma preocupação. Há um grande número de cursos novos, associados a candidaturas ao Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), e não se sabe ao certo que impacto é que isso terá na distribuição de vagas. Quando nos candidatámos ao PRR, ninguém nos disse que não podia haver licenciaturas novas ou que tinham que contar para as vagas já existentes.

É preciso fixar regras?
É preciso haver alguma atenção àquilo que se vai fazer, porque podemos, de repente, desregular tudo aquilo que se andou a fazer nos últimos anos. Sabemos muito bem que é preciso pôr gente [a estudar] no interior. Se abrirem muitas vagas novas no litoral, nem os alunos do interior vão querer ficar lá.

O princípio do despacho de vagas nos últimos anos tem sido manter o número total de vagas a concurso.
Temos a percepção de que não se vai mudar a política de um ano para o outro, abrindo aqui brechas. Precisamos de uma política de continuidade.

Outra promessa que o Governo já fez para esta legislatura foi a revisão do modelo de acesso ao ensino superior. É uma mexida que faz sentido?
Há uma reflexão que tem que se fazer sobre isto. O que motivou ter havido mais estudantes no ensino superior nos últimos dois anos? Eu penso que foi o facto de, neste período pandémico, os alunos só terem feito exame às disciplinas específicas com as quais vão concorrer ao ensino superior.

É favorável a um modelo como este?
Esta não é uma posição do CCISP, porque ainda não analisámos o tema, mas eu sou favorável a isso. Acho que se conseguiram bons resultados.

Os alunos não são piores?
Não, nós continuamos a ter bons alunos. Além disso, os alunos que entram com médias mais baixas dão muitas vezes bons alunos e bons profissionais.

O concurso nacional de acesso continua a ser a principal porta de entrada no ensino superior, mas nos últimos anos têm emergido vias alternativas. O que têm trazido esses públicos?
Trazem diversidade. Os concursos para maiores de 23 anos são uma oportunidade para a população adulta. Em tempos, o CCISP já fez uma proposta para que o acesso aos cursos de regime pós-laboral seja feito por um concurso local [uma candidatura apresentada directamente junto das instituições de ensino superior; actualmente, a maioria destes cursos está dentro do concurso nacional de acesso]. As pessoas que querem ir para o ensino pós-laboral, por regra, são adultos que já saíram do sistema de ensino. Se entram pelo concurso nacional de acesso, têm que se sujeitar aos exames nacionais. O que hoje acontece é que muitos alunos do regime pós-laboral são aqueles que não conseguem entrar no mesmo curso, em horário laboral, mas entram no pós-laboral porque as médias são mais baixas.

Isso desvirtua o próprio modelo.
Claro, o modelo está feito para a formação contínua de população em idade activa. Chamamos-lhes os ‘falsos pós-laborais’.

O concurso local para diplomados do ensino profissional tem tido dificuldades em arrancar. Porquê?

Isso também aconteceu com os cursos técnicos superiores profissionais e agora são um sucesso. No início, também ninguém os queria. Acho que com o concurso dos estudantes do ensino profissional está a acontecer um bocadinho o mesmo. Tem que fazer o seu caminho de afirmação. Nós sabemos, também por causa da questão demográfica, que os diplomados do ensino profissional são a única população onde há margem para ir buscar mais estudantes para o ensino superior, porque ainda há uma alta percentagem destes que não prossegue estudos.

leia a segunda parte da entrevista: “Espero que a maioria absoluta permita mexer em algumas leis fundamentais”

Samuel Silva 19 de Junho de 2022, Público