Porque é que a piada de que “o 20 é só para o professor” é, afinal, um drama

Não podemos continuar a cortar as pernas aos nossos melhores com o “medo” ou “tradição” de não dar vintes. Vamos resolver este problema?

Há disciplinas em que é tão impossível ter nota máxima que a piada de que “o 20 é só para o professor” é muito mais que um mito.

A “piada” tem várias faces

  1. Testes com perguntas impossíveis de responder, por estarem acima do nível da disciplina, ou por serem fora da matéria dada. Uma variante é na defesa de nota pedir a resposta impossível como condição para confirmar a nota máxima que o aluno merece por ter respondido bem a todas as perguntas possíveis.
  2. O professor faz saber e orgulha-se de nunca ter dado 20 valores: “Há 30 anos que dou aulas ao 11.º ano e só uma vez hesitei em dar um 20 – esse aluno é hoje professor numa universidade americana!”
  3. O professor limita simplesmente a nota máxima. “Quem tiver tudo certo tem 18, pois acima é só para doutores.”
  4. O professor não define nitidamente o programa, os conteúdos, os conceitos e o nível a atingir na disciplina (e se o programa já vem ambíguo de origem, ainda pior). O maior inimigo do aluno consciencioso é a incerteza sobre o que é suposto saber.

A “piada” é, afinal, um grande drama

Talvez os professores vivam a cultura de que “o 20 é só para o professor” para simplesmente continuar uma tradição, antiga embora obscura, e talvez ignorem os prejuízos graves que causam nos alunos e no sistema. Por isso, deviam interessar-se, e muito, pelos oito problemas da ideia de que “o 20 é só para o professor”.

A cultura de “o 20 é só para o professor” mantém a miragem da nota máxima, e isso leva alguns alunos a gastar inutilmente todas as horas da vida na busca de um objetivo que, nos bastidores, alguém impede de alcançar. Tem de haver vida para além do estudo

Fraude. Porquê? Porque substitui a escala legal de 0 a 20 valores por uma escala clandestina de 0 a 16 (ou 17, 18, ninguém sabe bem). O sistema diz que o 20 existe, mas o professor teima que não: “Temos o 16, sim senhor, e talvez o 17, e já é muito bom!” O acesso ao 20 é negado, trabalhe o aluno o que trabalhar.

Alteração das regras a meio do jogo. A escala de 0 a 20 valores está dividida em 20 intervalos com igual comprimento (1 valor). A cultura de “o 20 é só para o professor” altera o comprimento dos intervalos, fazendo com que a distância do 19 ao 20 seja infinitamente maior que a distância do 14 ao 15 ou do 10 ao 11. Se um aluno for mesmo muito bom, o comprimento do último intervalo esticará tudo o que for necessário até que o 20 fique inalcançável e em segurança.

Desmotivação. Os atletas treinam e competem por uma meta definida a cortar, um recorde definido a bater, uma marca nítida a superar. Ora na cultura de “o 20 é só para o professor” a meta é movediça. E o efeito é a desmotivação: não adianta aprender mais um pouco, saber mais, pois “até a colega que passa todo o tempo a estudar só conseguiu 17”.

Bloqueio da vida do aluno. A cultura de “o 20 é só para o professor” mantém a miragem da nota máxima, e isso leva alguns alunos a gastar inutilmente todas as horas da vida na busca de um objetivo que, nos bastidores, alguém impede de alcançar. Tem de haver vida para além do estudo. A exigência de uma disciplina tem de ser limitada e bem definida, desde o início.

Graves efeitos sistémicos. Quando o 20 é para os alunos que aprendem o que é suposto aprenderem, e isso está claramente definido, todo o sistema melhora, pois passa a compensar que professores, alunos, pais, editores, etc. valorizem e se interessem por saber o que é preciso saber. Atores conscienciosos sabem a necessidade de programas muito bem definidos e estruturados, densificados em metas curriculares, e de cadernos de exercícios (produzidos pela tutela) tipificando a exigência máxima. Num tal quadro, todo o sistema é notificado do objetivo e do processo para lá chegar. A cultura de “o 20 é só para o professor” supõe uma meta móvel, o que só é possível com programas nebulosos. Talvez por isso poucos se importaram quando a poucas semanas do início deste ano letivo, o Governo revogou programas, metas curriculares e cadernos de exercícios de todas as disciplinas que os tinham, desamparando os professores nas suas aulas, os alunos no seu estudo, os autores de exames nas suas perguntas. Há algum problema? Haveria sim, um problema muito sério, um escândalo nacional, se 20 valores fosse uma nota como outra qualquer; mas como não é...

Matar as lebres. Muitos professores viram turmas a superar-se nas notas, arrastadas por um aluno muito bom. Quando se vê que é possível chegar ao 19 ou 20, ainda mais alunos tentam. O que se passa na cultura de que “o 20 é só para o professor”? Ao limitar as notas do topo e mostrar que para subir um valor é preciso estudar, duas, três... dez vezes mais, cancela-se o incentivo dos alunos muito bons, e retrai-se a ânsia dos restantes seguirem no seu encalço aprendendo e superando-se.

Penalização internacional dos portugueses. Os licenciados e mestres de Portugal candidatam-se às melhores universidades do mundo e fazem a dura descoberta de que, nos seus países, muitos concorrentes tiveram a todas as cadeiras os 20 valores que em Portugal provincianamente lhes foram negados. Um português genial, por causa da irritante mania de que “o 20 é só para o professor”, é louvado na terrinha pela impressionante média de 18 valores, e depois irremediavelmente trucidado nos concursos no estrangeiro. É certo que as universidades estrangeiras consideram mais o percentil (se foi o primeiro do seu curso) do que o valor absoluto da média. O problema é que as escolas do topo têm tantos candidatos com média de 20 em primeiro do seu curso, que os melhores do curso com 18 valores não têm nenhuma hipótese. E os alunos sem hipótese são os portugueses, por causa de uma mesquinha, absurda e, afinal, devastadora tradição de que “o 20 é só para o professor”.

Os “maiores da aldeia”. Quando Portugal se fechava ao mundo e Portugal para si era o mundo todo, quem ensinava na faculdade podia considerar-se “a maior sumidade mundial”, ainda que fosse apenas “o maior da aldeia”. Aí o 20 tinha de ser para ele, a maior sumidade. Claro. Mas os novos portugueses têm mundo. E sonham ir para as melhores universidades do mundo, que podem ter metade do tamanho da Universidade de Lisboa mas têm orçamentos que dobram a soma dos orçamentos de todas as universidades e politécnicos portugueses. Têm equipamento, massa crítica, espírito aberto, meios, vários Nobel e muitos outros investigadores do mesmo calibre, efervescência de criatividade e ideias. Beber isso ajudaria imenso Portugal. Por que é que a maioria dos melhores alunos portugueses ficam impedidos de ir para lá? Porque “20 é só para o professor”. E ainda assim alguns conseguem? Conseguem, apenas para descobrir boquiabertos que no topo do mundo é frequente dar 20 na escala de 0 a 20, e, escândalo dos escândalos, algumas vezes dá-se 25 na escala de 0 a 20, inclusivamente a portugueses que aqui nunca “mereceram” 20.

Uma solução em três passos?

PRIMEIRO – Convencer-se que a ideia de que “o 20 é só para o professor” é totalmente errada. Vinte valores é a nota que corresponde a quem na disciplina aprendeu tudo o que é suposto aprender naquele tempo.

Para tanto, a disciplina deve começar com a clarificação dos conteúdos e o nível de profundidade a atingir em cada um deles (fornecendo uma régua graduada de exercícios que tipificam os diferentes patamares de dificuldade, até ao máximo).

Definir tudo isto é muito difícil, mas tem de ser feito e é possível ser feito, tanto no básico como no universitário.

SEGUNDO – No ensino básico e secundário: seja o Estado a fazer essa clarificação através de programas, sua densificação nas metas curriculares, e réguas graduadas de exercícios, de forma a proporcionar referenciais precisos (para alunos, professores, pais, editores e autores de exames saberem o que há a saber) e uniformes (para que todas as crianças do país tenham acesso à mesma educação de qualidade).

Assim se otimizam os recursos humanos deixando o professor entregue ao que só ele sabe e consegue fazer: identificar a melhor forma de ensinar aqueles conteúdos à Ana.

TERCEIRO –​ No ensino superior, não poderia haver um esforço maior a definir claramente o que há a saber e fornecendo uma régua graduada de exercícios, incluindo os análogos aos necessários para ter 20 valores? Não podemos continuar a cortar as pernas aos nossos melhores com o “medo” ou “tradição” de não dar vintes. Vamos resolver este problema? Por favor.

“O 20 é só para o professor” vale nota zero.

Opinião de João Araújo - 27 de Janeiro de 2022 | Público