Entrevista com reitor da Universidade de Lisboa “Tenho vergonha que haja cursos em que um estudante com 18 valores não entra”

Nos últimos dois anos, os estudantes não tiveram que fazer exames para completar o ensino secundário, tendo apenas que fazer as provas que servem de ingresso no superior. Para o reitor da Universidade de Lisboa, António Cruz Serra, que deixa o cargo em Setembro, esse é o modelo certo se o país quer levar mais jovens à formação superior.

Leia a segunda parte da entrevista: Fusão da Universidade de Lisboa poupou 6 milhões de euros. Boa parte foi investida em alojamento

Desde a fusão da Clássica e da Técnica, em 2013, que a Universidade de Lisboa se tornou a maior instituição de ensino superior nacional. Tem 12 dos 40 cursos procurados pelos melhores alunos do país. Por isso, podia ter acrescentado 168 vagas à sua oferta, mas só usou dois desses lugares. “São necessários mais recursos”, reclama o reitor António Cruz Serra, apologista também de mudanças no modelo de ingresso no ensino superior.

A Comissão Nacional de Acesso ao Ensino Superior (CNAES) anunciou, no mês passado, que vai lançar um debate sobre o ingresso no superior até ao final deste ano. O modelo precisa de mudanças?
Há uma coisa que a pandemia nos ensinou: temos um acesso ao ensino superior que tem que ser alterado. Os resultados do ano passado mostram isso. Tivemos um enorme aumento do número de candidatos. Este ano também vamos ter.

Acredita que, este ano, o número de candidatos também vai ser elevado?
Acabar com a obrigatoriedade do exame nacional para concluir as disciplinas que não constituem provas de acesso ao superior fez com que houvesse muito mais candidatos. Este ano vai acontecer o mesmo. Há jovens que são mais focados em determinados assuntos e menos noutros. Provavelmente, têm maior dificuldade em terminar o ensino secundário se precisarem de fazer o exame nacional numa determinada disciplina que até vai ter um impacto limitado na sua formação futura.

As mudanças devem ser sobretudo no ensino secundário?
Não estou a retirar importância a nenhuma disciplina. O 12.º ano tem que ser feito com seriedade. Mas os candidatos que tiveram aprovação ao longo do 10.º, 11.º, 12.º anos numa dada disciplina, por vezes ficam um ano ou dois a tentar acabar o secundário porque não conseguem ter a nota mínima no exame final. Isso faz, obviamente, cair o número de candidatos ao ensino superior. Isso foi evidente no ano passado. Se queremos mais estudantes a entrar no ensino superior, temos que olhar para este assunto.

As universidades podem ter um papel mais activo na selecção dos seus próprios alunos?
Não acompanho quem defende selecções baseadas numa entrevista. Vimos que, até nas principais universidades americanas, isto deu problemas muito graves nos últimos anos. O nosso sistema é justo do ponto de vista da seriação dos estudantes e da colocação em igualdade de oportunidades. As provas nacionais garantem-nos uma base comum.

Mas mudaria para um modelo mais próximo do que está a vigorar este ano?
Acho que sim. Não devemos provocar rupturas em modelos que têm funcionado bem. O nosso grande problema é termos uma grande quantidade de estudantes com notas muito altas que não conseguem entrar em determinados cursos. Eu, francamente, tenho vergonha de ter meia dúzia de cursos em que um estudante com 18 valores não entra. Estamos a torturar os nossos adolescentes com esta competitividade. Para ter tantos alunos com médias de 18 e 19, são necessários enormes sacrifícios de estudo durante o secundário. Na Universidade de Lisboa, em particular no Instituto Superior Técnico, temos vindo a aumentar as vagas nestes cursos à medida que nos deixam.

Mas há limites a esse aumento.
Aumentar o número de vagas tem um custo muito grande. O Governo tem que perceber que, para aumentar as vagas nos cursos procurados pelos melhores alunos, é preciso mais financiamento. Nós temos aumentado tudo o que podemos, mas este ano já não vamos aumentar, porque já não há recursos. Mais alunos significam instalações e, fundamentalmente, professores. Se aumentamos o número de alunos em 30%, precisamos de mais uma turma, que precisa de, pelo menos, três professores novos. Três professores novos custam 180 mil euros por ano.

Houve um aumento do abandono do ensino superior devido aos impactos da pandemia?
Não noto isso. Tivemos alguns problemas nos estudantes internacionais, mas nada de muito significativo e com menor impacto do que era expectável. Em todas as universidades portuguesas há um compromisso muito grande de não deixar ficar ninguém para trás. Somos capazes de detectar os problemas mais importantes dos estudantes que têm problemas financeiros que os impeçam de continuar.

Como vai ser o arranque do próximo ano lectivo?
Primeiro, garantimos que ninguém perdeu o ano por causa da pandemia  nem no ano passado, nem no ano presente. Mas a qualidade do ensino vai-se degradando ao longo do tempo, até porque há saturação por parte dos estudantes. Considero que devemos regressar o mais rapidamente possível ao ensino presencial.

Mas já haverá ensino totalmente presencial no arranque do novo ano?
Estamos num momento em que é difícil responder com certeza absoluta a essa pergunta. As escolas da Universidade de Lisboa estão a trabalhar com plano A e plano B. A maior parte da universidade tem como plano A o regresso à actividade presencial plena. Algumas escolas têm um plano que passa por manter aulas teóricas à distância e as restantes em modo presencial. Mas todos têm um plano B, que é ao contrário. Se houver condições de termos toda a gente em modo presencial, teremos toda a gente em modo presencial. Devo dizer que estava preparado para adiar o início do ano lectivo, face à evolução da pandemia, mas isso não vai ser necessário. É essencial termos todos os jovens acima de 18 anos vacinados antes de começar o ano lectivo nas universidades – que acontecerá com Setembro já bem adiantado – e penso que haverá condições para que isso aconteça.

Esta geração teve dois anos de um ensino anormal por via da pandemia. Há um risco de terem um selo de “geração covid” que de algum modo os diminua, por exemplo no mercado de trabalho?
Eu sou da geração que estava na universidade no 25 de Abril e sei o que é ter um selo desses. Foi política da universidade desde o primeiro dia garantir que a avaliação era séria. E que não havia falhas do ponto de vista da avaliação. Aquilo que tenho visto até agora não indicia nenhum problema.

O novo presidente do Conselho de Reitores das Universidade Portuguesas (CRUP) tem falado na necessidade de uma fórmula de financiamento “adequada e justa” para o ensino superior. É da mesma opinião?
Revejo-me totalmente nessa posição. Não é uma boa decisão não aplicar a fórmula de financiamento que existe. Universidades com a de Lisboa e do Porto têm uma dimensão tal que não vão variar muito o seu nível de financiamento. O problema é que há universidades que têm financiamentos 30% abaixo do valor que a fórmula lhes daria. Eu não compreendo como é que o ISCTE – Instituto Universidade de Lisboa, a Universidade da Beira Interior, a Universidade do Minho, a Universidade Nova de Lisboa ou a Universidade de Aveiro são tão maltratadas.

Sendo uma fórmula distributiva, tem que acontecer uma de duas coisas: ou há mais dinheiro para compensar essas instituições que estão a ser prejudicadas ou algumas vão ter que perder para dar a essas.
Devem acontecer as duas coisas. O que era desejável era que houvesse um reforço significativo do orçamento do ensino superior. Há dez anos, a dotação equivalente para o ensino superior era 30% superior à actual. Estamos longíssimo daquilo que já foi o financiamento das universidades portuguesas.

Como se posicionam as instituições que podem perder financiamento para compensar aquelas que estão mais subfinanciadas?
Acho que vai ter que perguntar a essas instituições e aos politécnicos em particular. Estivemos a fazer um exercício de aplicação da fórmula durante uns meses, num grupo de trabalho criado pelo ministro, com dois representantes do CRUP, dois do conselho Coordenador dos Institutos Superiores Politécnicos e a Direcção-Geral do Ensino Superior. O resultado do exercício mostra que há um deslocamento do financiamento do sistema universitário para o politécnico. Mas eu acho que não podemos ter descidas abruptas de financiamento em lado nenhum porque as instituições estão, no fundo, todas subfinanciadas.

O Ministério do Ensino Superior propôs mexidas nas carreiras dos docentes e investigadores ainda nesta legislatura. É necessário, como o Governo prevê, separar os concursos de promoção dos concursos de recrutamento?
Aquilo que está em cima da mesa é uma antiga reivindicação das instituições e aquilo que foi anunciado está em linha com o que têm sido as nossas propostas. Não podemos ter instituições decapitadas, sem professores catedráticos e associados nas diferentes áreas científicas. É preciso dar perspectiva de carreira às pessoas, ter direcções nas equipas e recompensar o trabalho dos docentes e a sua investigação. Temos outro problema para resolver no Estatuto da Carreira Docente. Actualmente, para fazer promoções, avalia-se a investigação feita pelos docentes e não está a ser dada a devida atenção àqueles que melhor ensinam.

Samuel Silva (Texto) e Daniel Rocha (Fotos) 4 de Agosto de 2021